domingo, 20 de outubro de 2013

Século II - Papias de Hierápolis





Papias

Papias (? - 160? EC), de Hierapolis (Frígia, actual Turquia), escreveu Interpretações dos Dizeres do Senhor, hoje inexistente mas citado por Ireneu, Apolinário de Laodiceia e Eusébio. 

Segundo o que é citado, Papias afirmou ter conhecido as filhas do apóstolo Filipe e um tal João, o Idoso. Também afirmou dar mais valor às palavras que ouviu directamente dos “anciãos” ou dos seus seguidores do que aos escritos.

Eusébio cita Papias (200 anos depois) de um modo evidentemente depreciativo (História da Igreja, III, 39). Declara-o como “mentecapto”. 

Um dos legados mais bizarros de Papias é a sua versão sobre a morte de Judas. Hoje só sabemos sobre isto graças a Apolinário de Laodiceia que achou importante este ensinamento...

Outra versão da morte de Judas

Papias de Hierápolis, dá uma terceira versão sobre a morte de Judas, a acrescentar às duas existentes no Novo Testamento. Apolinário de Laodiceia, referindo-se a Judas Iscariotes, cita Papias da seguinte forma:

Fragmentos de Apolinario of Laodicea

Judas não morreu enforcado, mas continuou vivo, pois a corda foi partida antes de ele sufocar. E isto está claro nos Actos dos Apóstolos, que ele caíu de cabeça e as suas entranhas derramaram-se. E Papias, o discípulo de João, recorda isto de modo ainda mais claro, dizendo no seu quarto livro das Interpretações dos Dizeres do Senhor:
Judas caminhou neste mundo como um terrível exemplo de impiedade. Ficou tão inchado na carne que nem sequer cabia onde uma carroça facilmente passava
[- nem sequer a sua cabeça passava sozinha. As suas pálpebras eram tão inchadas que ele não conseguia ver a luz e os seus olhos não podiam ser vistos nem sequer por um médico com instrumentos, tal era a profundidade em que estavam.
E os seus genitais pareciam disfigurados e nauseantes. Quando defecava, vermes saíam do seu corpo através das suas partes privadas, devido aos seus pecados. Depois de muitas agonias e punições, ele morreu no seu próprio lugar. Esse lugar está desabitado e desolado, e até hoje ninguém o pode visitar sem tapar as narinas tal foi a quantidade de imundície libertada pelo seu corpo que ficou espalhada no solo.] 
[Tendo sido esmagado por uma carroça, as suas entranhas derramaram-se.] 

Por esta descrição de Papias, Judas tinha um aspecto horrível mesmo quando ainda era vivo. 

Papias estaria, como apologista do cristianismo, a tentar explicar a morte de Judas, contada em Actos dos Apóstolos. Como é que alguém, mesmo sendo muito gordo, pôde rebentar seu intestino apenas por cair no chão? A explicação de Papias é bastante estranha: Judas era extremamente gordo, ficou apertado numa rua estreita e foi esmagado por uma carroça!!!

Relembrando as duas versões que existem no Novo Testamento (que podem ser lidas aqui), vemos que Papias deu preferência à versão de Actos e criou um episódio repugnante para a história do fim da vida de Judas:

Mateus 27:3–8
Actos 1:18–19
Judas mostra-se arrependido da traição
Judas não mostra arrependimento
Judas devolveu o dinheiro da traição e os sacerdotes compraram um terreno (de um oleiro, como se fosse relevante...) com esse dinheiro;
Judas comprou um terreno com o dinheiro da traição;
Judas cometeu suicídio enforcando-se;
Judas caiu (terá sido de um local alto? - entendendo-se uma queda acidental) e, quando caiu, as suas entranhas espalharam-se pelo solo;
o Campo de Sangue chama-se assim porque foi comprado com o “preço de sangue”;
o Campo de Sangue chama-se assim por causa das entranhas derramadas;


Papias sobre Marcos e Mateus, segundo Eusébio

Na sua obra "Interpretações dos Dizeres do Senhor", em relação ao trabalho de Marcos, Papias disse que foi baseado na pregação de Pedro:

Eusébio, História da Igreja III.39

O Ancião também disse o seguinte: “Marcos, sendo o intérprete de Pedro, tudo o que ele se lembrava escreveu com precisão, mas não na ordem em que essas coisas foram faladas ou feitas por nosso Senhor. Pois ele não ouviu o Senhor, nem o seguiu, mas depois, como eu disse, ele estava com Pedro, que não fez um relato ordenado dos discursos do Senhor, mas construiu seus ensinamentos de acordo com os credos. Portanto, Marcos não fez nada de errado ao escrever assuntos isolados como ele se lembrava deles, pois ele deu atenção especial a uma coisa, de não passar por nada que ouviu e de não falsificar nada nesses assuntos.” 

Eusébio queria demonstrar que Papias é testemunha de que um Evangelho foi escrito por um homem chamado Marcos que era discípulo de Pedro. 

Mas Papias certamente não estava a falar do Evangelho Segundo Marcos que existe no Novo Testamento, porque este texto contém uma narrativa ordenada de eventos relativos à personagem de Jesus.

Papias também falou sobre outro relato, desta vez um relato dos ensinamentos de Jesus escritos por Mateus. Aqui, Eusébio observou que esta obra foi escrita em um dialeto hebraico.
Com relação a Marcos, essas coisas foram relatadas pelo pai [João, o Velho]. Com relação a Mateus, essas outras coisas foram ditas: “Portanto, Mateus pôs em ordem a logia (“oráculos divinos”) em um dialeto hebraico, e cada um os interpretou como podia.

Mais uma vez, Papias não devia estar a falar do Evangelho Segundo Mateus do Novo Testamento, pois este texto foi escrito em grego. Não contém nenhuma evidência que a versão grega do Evangelho Segundo Mateus tenha sido traduzido do hebraico para o grego.

Este esforço de Eusébio a citar Papias (que Eusébio detestava) foi para que este dois evangelhos, Marcos e Mateus, deixassem, definitivamente, de ser encarados como textos anónimos. Foi para colocar um nome no título de cada evangelho.

Vale a pena rever o texto completo de História da Igreja onde Eusébio cita Papias.

História da Igreja, Eusébio de Cesareia, livro III, capítulo 39, 
Os escritos de Papias. 
Existem cinco livros de Papias, que têm o título de "Exposições dos Oráculos do Senhor". Ireneu menciona essas como as únicas obras escritas por ele, nas seguintes palavras:  
"Essas coisas são atestadas por Papias, um homem antigo que era ouvinte de João e companheiro de Policarpo, no seu quarto livro. Pois cinco livros foram escritos por ele".  
Estas são as palavras de Ireneu.

Mas o próprio Papias, no prefácio dos seus livros de forma alguma declara que ele mesmo era um ouvinte e testemunha ocular dos santos apóstolos, mas ele mostra pelas palavras que usa que recebeu as doutrinas da fé daqueles que eram seus amigos.

Ele diz:  
"Mas não hesitarei também em registrar para vocês, juntamente com minhas interpretações, tudo o que eu cuidadosamente aprendi dos anciãos e cuidadosamente recordei, garantindo a sua verdade. Pois não tenho, como uma multidão de outros, prazer nos que falam muito, mas nos que ensinam a verdade; não naqueles que relatam mandamentos estranhos, mas naqueles que transmitem os mandamentos dados pelo Senhor na fé, e procedendo da própria verdade.
Se, então, veio alguém que tinha sido um seguidor dos anciãos, eu o questionei a respeito das palavras dos anciãos - o que André ou o que Pedro disse, ou o que foi dito por Filipe, ou por Tomé , ou por Tiago, ou por João, ou por Mateus, ou por qualquer outro dos discípulos do Senhor, e o que Aristion e o presbítero João, os discípulos do Senhor, dizem. Pois eu não pensei que o que deveria ser obtido dos livros me beneficiaria tanto quanto o que vinha da voz viva e permanente."
Vale a pena observar aqui que o nome João é enumerado duas vezes por ele. O primeiro ele menciona em conexão com Pedro e Tiago e Mateus e o resto dos apóstolos, claramente se referindo ao evangelista; mas o outro João ele menciona após um intervalo, e o coloca entre outros fora do número dos apóstolos, colocando Aristion antes dele, e ele claramente o chama de presbítero (idoso). 
Isso mostra que é verdadeira a afirmação daqueles que dizem que havia duas pessoas na Ásia com o mesmo nome, e que havia dois túmulos em Éfeso, cada um dos quais, até os dias atuais, é chamado de João. É importante notar isso. Pois é provável que tenha sido o segundo, se alguém não estiver disposto a admitir que foi o primeiro que viu o Apocalipse, que é atribuído pelo nome a João.
E Papias, de quem falamos aqui, confessa que recebeu as palavras dos apóstolos daqueles que os seguiram, mas diz que ele mesmo era um ouvinte de Aristion e do presbítero João. Pelo menos ele os menciona frequentemente pelo nome e dá suas tradições em seus escritos. Esperamos que essas coisas não tenham sido aduzidas inutilmente por nós. 
Mas é apropriado acrescentar às palavras de Papias que foram citadas outras passagens de suas obras nas quais ele relata alguns outros eventos maravilhosos que afirma ter recebido da tradição. 
Já foi declarado que o apóstolo Filipe morava em Hierápolis com suas filhas. Mas deve ser notado aqui que Papias, seu contemporâneo, diz que ouviu uma história maravilhosa das filhas de Filipe. Pois ele relata que em seu tempo um ressuscitou dos mortos. E ele conta outra história maravilhosa de Justus, de sobrenome Barsabás: que ele bebeu um veneno mortal, e ainda, pela graça do Senhor, não sofreu nenhum dano.
O Livro de Atos registra que os santos apóstolos, após a ascensão do Salvador, apresentaram este Justo, junto com Matias, e oraram para que um fosse escolhido no lugar do traidor Judas, para completar seu número. O relato é o seguinte: E eles apresentaram dois, José, chamado Barsabás, que tinha o sobrenome Justo, e Matias; e eles oraram.
O mesmo escritor também dá outros relatos que ele diz ter vindo a ele por tradição não escrita, certas parábolas e ensinos estranhos do Salvador, e algumas outras coisas mais míticas.
A estes pertence sua declaração de que haverá um período de alguns milhares de anos após a ressurreição dos mortos, e que o reino de Cristo será estabelecido em forma material nesta mesma terra. Suponho que ele obteve essas idéias por meio de uma compreensão equivocada dos relatos apostólicos, sem perceber que as coisas ditas por eles eram ditas misticamente em números. 
Pois ele [Papias] parece ter uma compreensão muito limitada, como se pode ver em seus escritos. Mas foi devido a ele que tantos dos Padres da Igreja depois dele adotaram uma opinião semelhante, pedindo em seu próprio apoio a antiguidade do homem; como, por exemplo, Ireneu de e qualquer outro que possa ter proclamado pontos de vista semelhantes. 
Papias também dá em seu próprio trabalho outros relatos das palavras do Senhor sobre a autoridade de Aristion, que foi mencionado acima, e as tradições transmitidas pelo presbítero João; a que nos referimos aqueles que gostam de aprender. Mas devemos acrescentar às palavras dele que já citámos a tradição que ele dá a respeito de Marcos, o autor do Evangelho.
"O presbítero também disse: Marcos, sendo o intérprete de Pedro, tudo o que ele se lembrava escreveu com precisão, mas não na ordem em que essas coisas foram faladas ou feitas por nosso Senhor. Pois ele não ouviu o Senhor, nem o seguiu, mas depois, como eu disse, ele estava com Pedro, que não fez um relato ordenado da logia do Senhor, mas construiu seus ensinamentos de acordo com os credos. Portanto, Marcos não fez nada de errado ao escrever assuntos isolados como ele se lembrava deles, pois ele deu atenção especial a uma coisa, de não passar por nada que ouviu e de não falsificar nada nesses assuntos.."
Essas coisas são relatadas por Papias a respeito de Marcos.
Mas a respeito de Mateus, ele escreve o seguinte:
"Então Mateus escreveu os oráculos na língua hebraica, e cada um os interpretou como podia."
E o mesmo escritor usa testemunhos da primeira epístola de João e da de Pedro da mesma forma. E ele relata outra história de uma mulher, que foi acusada de muitos pecados perante o Senhor, que está contida no Evangelho segundo os Hebreus. Achamos necessário observar essas coisas, além do que já foi dito.

Referências:
 - Fragmentos de Apolinário de Laodiceia: http://www.textexcavation.com/papias.html#apollinarius


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