domingo, 10 de novembro de 2013

Século II - Justino Mártir





Justino não conhecia os evangelhos por nome

Justino (100 - 165 EC) freqüentemente cita os evangelhos, contudo não os cita como quatro obras separadas, mas sim com a designação de “Memória dos apóstolos”. É provável que Justino desconhecesse a divisão em quatro evangelhos com os nomes que conhecemos (Mateus, Marcos, Lucas, João). Mas, 30 anos depois de Justino, essa divisão já era afirmada, por exemplo, por Ireneu.


Porque Cristo é parecido com o paganismo

Justino seria confrontado com os seus opositores e críticos com a acusação de que o cristianismo era uma cópia dos mitos gregos e romanos.

Para explicar este fenómeno, Justino diz que o Diabo, muitos séculos antes, tendo conhecimento das profecias sobre o Cristo, tentou imitá-las por antecipação, enviando demónios disfarçados de Deuses que se mostraram aos egípcios, aos gregos, aos romanos e a todo o mundo "pagão" - tudo o que o Cristo iria fazer mais tarde, o Diabo tentou fazer antes imitando por antecipação.

Justino inventou assim o plágio por antecipação - o Diabo imitou Cristo antes do próprio Cristo aparecer.



Justino - Diálogo com Trifon (c 150 EC)

O "Diálogo com Trifon" documenta as tentativas de Justino Mártir para justificar o cristianismo. É provável que Trífon tenha sido uma personagem criada por Justino para compor um diálogo intelectual onde discute a validade do cristianismo.

CAPÍTULO LXIX – O Diabo, emulando a verdade, inventou fábulas sobre Baco, Hércules, e Esculápio. 
Seja bem assegurado, então, Trifon, que eu tenho um forte conhecimento e fé nas Escrituras por essas falsificações que aquele que é chamado o Diabo é dito ter realizado entre os gregos, assim como alguns eram forjados pelos magos no Egito, e os outros, pelos falsos profetas nos dias de Elias.
Pois, quando eles dizem que Baco, filho de Júpiter, foi gerado por relação sexual [de Júpiter] com uma mulher, Semele, e que ele foi o descobridor da videira; e que foi rasgado em pedaços; e, tendo morrido, ressuscitou e ascendeu ao céu, e quando introduziram o vinho em seus mistérios, eu não percebo que [o diabo] imitou a profecia anunciada pelo patriarca Jacó, e registada por Moisés?
E quando eles dizem que Hércules era forte, e viajou por todo o mundo, e foi gerado por Alcmena, e subiu ao céu quando morreu, não é evidente que a Escritura, que fala de Cristo, "forte como um gigante para executar sua missão" foi de igual modo imitada?
E quando ele [o diabo] trouxe Esculápio como levantador dos mortos e curador de todas as doenças, não digo que da mesma forma imitou as profecias sobre Cristo, [...]

Cap. LXX - Os mistérios de Mitra são distorções das profecias de Daniel e Isaías. 
E quando aqueles que gravaram os mistérios de Mitra dizem que ele foi gerado de uma pedra, e que o lugar onde os crentes são iniciados é uma caverna, não se vê aqui a pronunciação de Daniel de que uma pedra foi cortada, sem mãos, de uma grande montanha?
Foi imitado por eles. E não tentaram também, da mesma forma, imitar as palavras de Isaías? Pois eles artificialmente citam as palavras de Isaías, as quais repetirei aqui para você saiba como são estas coisas: "Ouvi, vós os que estais longe, [...] ele morará na caverna elevada da rocha forte; pão deve ser dado a ele, e sua água não faltará; vereis o Rei da glória[...]"
Agora é evidente que nesta profecia [é feita alusão] ao pão que o nosso Cristo nos deu de comer, em memória de ter-se feito carne para o bem de Seus crentes, para quem também sofreu, e para o cálice que Ele nos deu a beber, em memória de seu próprio sangue, com acções de graças. [...]
Além disso, as Escrituras são igualmente explícitas ao dizer que aqueles que têm a reputação de conhecer as Escrituras, e os que ouvem as profecias, não têm entendimento. E quando eu ouço, Trifon, que Perseus foi gerado de uma virgem, eu entendo que a serpente enganadora falsificou também isso.

Referência web: http://www.earlychristianwritings.com/text/justinmartyr-dialoguetrypho.html

Justino - Primeira Apologia (c 150 EC)

Justino endereçou a "Primeira Apologia" ao imperador romano Antoninus Pius e seus filhos. Para além de contestar a perseguição dos cristãos, Justino também tenta defender a filosofia cristã com uma detalhada descrição das crenças e práticas.

Cap. V - Cristãos acusados de ateísmo
... Desde antigamente que os demónios, efectuando aparições, fizeram coisas tão espantosas que aqueles que não usaram a razão ficaram aterrorizados e, levados pelo medo, por não saberem que eram demônios, chamaram-lhes "deuses", ficando cada um com o nome que cada demónio escolheu para si.
E quando Sócrates se esforçou, por verdadeira razão e análise, por trazer essas coisas para a luz, e libertar os homens dos demónios, os próprios demónios, por meio de homens injustos, o levaram à morte, como um ateu e profano, [...], e no nosso caso, eles exibem uma atividade similar contra nós [os cristãos].
Pois não foi só entre os gregos que a razão (Logos) prevaleceu em condenar estas coisas através de Sócrates, mas também entre os bárbaros foram condenadas pela Razão (ou Palavra, Logos). Ele, que tomou forma e tornou-se homem, e foi chamado Jesus Cristo, e em obediência a Ele, não só negamos que quem fez tais coisas como negamos que são deuses, mas afirmamos que eles são demónios malvados e ímpios, cujas ações não são comparáveis àquelas de homens desejosos de virtude. 

Cap. XXI - analogias com história de Cristo 
E quando dizemos também que o Logos, que é o primogénito de Deus, foi produzido sem união sexual, e que Ele, Jesus Cristo, nosso Mestre, foi crucificado, morreu, ressuscitou e subiu aos céus , nós propomos nada diferente do que vocês acreditam em relação àqueles a quem vocês estimam ser filhos de Júpiter. Pois vocês sabem quantos filhos seus escritores conceituados atribuem a Júpiter:
 - Mercúrio, intérprete e professor de todos;
 - e Esculápio que, sendo um grande médico, foi atingido por um raio, e assim subiu ao céu;
 - e Baco, também, depois de ter sido decepado dos seus membros;
 - e Hércules, quando se atirou às chamas para escapar às suas labutas
 ...
 E o que dizer de Ariadne e aqueles que, como ela, foram declaradas a pertencer entre as estrelas?
 E o que dizer dos imperadores que morrem entre vós, a quem vocês julgam dignos de deificação, e em cujo nome vocês produzem alguém que jura que viu César subindo ao céu a partir da pira funerária ?
 E que tipo de ações são registradas de cada um desses famosos filhos de Júpiter, é desnecessário dizer para aqueles que já conhecem. No entanto estão escritas para benefício e incentivo de jovens estudantes, pois todos acham que é uma coisa honrosa essa de imitar os deuses. Mas longe esteja tal pensamento de todos os bem-intencionados, de acreditar que o próprio Júpiter, o governador e criador de todas as coisas, era ao mesmo tempo um patricida e o filho de um patricida, e que obcecado pelo amor aos prazeres básicos e vergonhosos, entrou em Ganimedes e nessas muitas mulheres que violou, e que os seus filhos repetiram as mesmas acções.
Mas, como dissemos acima, os demónios maus perpetraram essas coisas.
... 

Cap. LIV - Origem da mitologia pagã 
Mas aqueles que transmitem os mitos que os poetas construiram, não apresentam nenhuma prova para os jovens que deles aprendem.
Mas passaremos nós a demonstrar que elas foram proferidas pela influência dos demônios maus, para enganar e desviar a raça humana.
Tendo ouvido proclamar através dos profetas que o Cristo estava para vir, e que os ímpios entre os homens deveriam ser punidos pelo fogo, apresentaram-se muitos dos que seriam chamados filhos de Júpiter, sob a impressão de que eles seriam capazes de produzir nos homens a idéia de que as coisas que foram ditas em relação a Cristo eram meros contos maravilhosos, como as coisas que foram ditas pelos poetas. Os demónios ouviram entre todas as nações onde o Cristo iria ser venerado o que os profetas predisseram.
Os demónios imitaram o que foi dito sobre Cristo pelos profetas mas sem entender com precisão.
O profeta Moisés predisse: "Não faltará um príncipe de Judá, nem um legislador de entre seus pés, até que venha Aquele a quem é reservado, e ele deve ser o desejo dos gentios , amarrando o seu jumentinho à vinha, lavando seu manto no sangue das uvas " .
Os demônios, portanto, quando ouviram estas palavras proféticas, ensinaram que Baco era filho de Júpiter, que era o descobridor da vinha, e colocaram o vinho entre os seus mistérios, e ensinaram também que, depois de ter sido feito em pedaços, Baco subiu ao céu.
E porque na profecia de Moisés não tinha sido expressamente intimado se Aquele que estava para vir era Filho de Deus, e se ele, montando no potro, permaneceria na terra ou ascenderia ao céu, e porque o nome de "potro" pode significar tanto o potro de uma jumenta ou o potro de um cavalo, que , sem saber se aquele que foi predito traria o filho de jumenta ou de um cavalo como sinal de Sua vinda, nem se Ele era o Filho de Deus, como dissemos acima, ou do homem, deu que Belerofonte, um homem que nasceu do homem , ele mesmo subiu ao céu no seu cavalo Pegasus.
E, ouvindo eles isto dito por outro profeta Isaías, que Ele deveria nascer de uma virgem, e por seus próprios meios subir ao céu, eles fingiram que se falava de Perseus.
E quando eles sabiam o que era dito, como foi já referido, nas profecias outrora escritas: "forte como um gigante para correr o seu curso", disseram que Hércules era forte, e que tinha viajado por toda a terra.
E quando, mais uma vez, eles aprenderam que havia sido predito que Ele deveria curar todas as doenças e ressuscitar os mortos, eles produziram Esculápio.

Cap. LXVI - Eucaristia de Mitra 
Pois não é pão comum e bebida comum que nós recebemos; mas assim como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne pela Palavra de Deus, teve carne e sangue para nossa salvação, assim também fomos ensinados que o alimento que é abençoado pela oração de sua palavra, e de que nosso sangue e nossa carne por transmutação são nutridos, é a carne e o sangue daquele Jesus que se fez carne. Pois os apóstolos, nas memórias compostas por eles, que são chamadas de Evangelhos, assim nos entregaram o que lhes foi ordenado; que Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, disse: “Fazei isto em memória de mim, isto é o meu corpo”; e que, da mesma maneira, tendo tomado o cálice e dado graças, Ele disse: “Isto é o meu sangue”; e deu a eles sozinhos. Que os demônios perversos imitaram nos mistérios de Mitra, ordenando que a mesma coisa fosse feita. Pois, esse pão e um copo de água são colocados com certos encantamentos nos ritos místicos de quem está sendo iniciado; você sabe ou pode aprender 




domingo, 3 de novembro de 2013

Século II - Marcion de Sínope




Marcion de Sinope

Marcion, originário de Sinope (atual Turquia, costa do Mar Negro, antiga região do Pontus), foi viver para Roma por volta do ano 140 EC, onde veio a obter grande sucesso, reunindo um enorme conjunto de seguidores. Era um homem muito abastado, pois terá oferecido 200.000 sestércios à comunidade cristã de Roma.

Ao ler as escrituras judaicas, Marcion chegou à conclusão que os ensinamentos de Jesus Cristo eram incompatíveis com o deus Yahveh do Antigo Testamento. Na sua doutrina propunha dois deuses distintos:
- Yahveh, que seria o demiurgo (criador semi-poderoso) do mundo físico imperfeito e 
- o Deus Pai, que enviou Cristo para que os fiéis pudessem se libertar do demiurgo.

Considerou Yahveh como um demiurgo maligno, por isso rejeitou completamente o Antigo Testamento.
Defendia, também, que Cristo tinha Paulo como principal apóstolo. Propôs um canon baseado numa versão própria de um evangelho (baseado no Evangelho de Lucas) e também dez cartas de Paulo (das quais removeu todas as referências ao Antigo Testamento).


Adepto de Paulo

Segundo Marcion, Paulo era o único apóstolo legítimo. Indivíduos como Pedro, Tiago e João, não tinham uma verdadeira compreensão de Jesus ou do Deus Supremo. Esta posição é interessante, porque, segundo os Evangelhos, Paulo nunca esteve com Jesus da Nazaré, enquanto Pedro, Tiago e João estiveram.

Marcion era um devoto seguidor da doutrina registada nas cartas de Paulo. Em muitas passagens Paulo fala de um Deus de puro amor (Romanos 5:8). Noutras passagens, parece evidente que Paulo não gosta da lei judaica, a Torah, considerando-a uma prisão (Gálatas 3:23).

Agora imaginemos um adepto de Paulo lendo a Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento), onde se encontra a lei (Torah). Quando Marcion leu a Bíblia hebraica, o deus descrito nesses livros, Yahveh, pareceu-lhe muito diferente do Deus que Paulo descreve e concluiu que deveria ser um outro deus. Yahveh era um deus que forçava leis pesadas e julgava, muitas vezes sem misericórdia, a humanidade por essas leis.

Marcion também afirmou que o deus da Bíblia hebraica era um deus inferior, um deus que, às vezes, parecia não ter conhecimento de certas coisas que deveriam ser fáceis para um ser poderoso (por exemplo, em Gênesis 3:9, Yahveh não sabe onde Adão está, porque Adão escondeu-se).

Marcion constatatou que o mundo físico também tinha muitas falhas, pois continha sofrimento para muitos seres humanos. Esse mundo não podia ter sido criado pelo Deus Pai, o deus de amor que Paulo tanto fala nas suas cartas. Portanto Yahveh, o deus inferior, era o Criador do mundo que aprisionou as pobres almas humanas. O Deus Pai enviou o seu filho Cristo para libertar os homens dos grilhões de Yahveh.

O Deus Pai era um Deus até então desconhecido, revelado por Jesus, o filho de Deus, a Paulo.

Marcion rejeitou completamente o Antigo Testamento. Um problema que Marcion teve de ultrapassar é que Paulo, nas suas cartas, citava constantemente porções da Bíblia Hebraica, alegando serem fonte de revelação sobre o Cristo. Por isso, Marcion criou uma versão das cartas de Paulo em que estas citações foram removidas.


Evangelho Marcionita

Marcion, gnóstico e docético acima de tudo, defendia um Cristo que revelava-se como uma ilusão, com natureza puramente espiritual, incorpórea - Jesus não era humano, apenas tinha aparência humana.

Produziu um evangelho, semelhante ao de Lucas, com a preocupação de que fosse de acordo com a sua doutrina. A narrativa do nascimento de Jesus foi suprimida. No seu evangelho, Jesus surge repentinamente nos vários cenários.

Ireneu de Lyon escreveu assim sobre Marcion em Contra Heresias (por volta de 180 EC):
Contra Heresias, Ireneu de Lyon, Livro 1, capítulo XXVII 
"Além de tudo isso, Marcion mutilou o Evangelho segundo Lucas, descartando tudo o que está escrito sobre o nascimento do Senhor e descartando todos os discursos do Senhor contendo ensinamentos em que está claramente escrito que o Senhor confessou seu pai como o criador de o universo"

O evangelho adaptado por Marcion começaria assim:
No décimo quinto ano de Tibério César, Jesus desceu [do céu] para Cafarnaum, uma cidade na Galiléia, e ensinou [na sinagoga] no Sabbath; E ficaram maravilhados com a doutrina dele, ...

A doutrina católica acabou por rejeitar os ensinamentos de Marcion e todas as suas obras escritas foram banidas e só se consegue recuperar alguma coisa a partir de outros autores que censuraram a obra deste como, por exemplo, Ireneu de Lyon, Tertuliano e Epifânio de Salamis.


Tertuliano - "Contra Marcion"

Tertuliano (que viveu 160 a 220 EC), combateu o marcionismo. Em Contra Marcion, critica a abordagem docética de Marcion na qual Jesus descia do céu para ser visto na Galileia, contrária à narrativa dos evangelhos que dizem que Jesus cresceu e viveu na Galileia.

Tertuliano, Contra Marcion, Livro IV, capítulo 7
"No décimo quinto ano do reinado de Tibério" - esta é a proposição de Marcião - "ele desceu à cidade de Cafarnaum na Galiléia" -  claro que significando que desceu do céu do Criador [Yahveh]. Ao que ele já havia descido de seu próprio céu [do Deus Pai].
Como tinha sido então o seu itinerário, para ele ser descrito como primeiro descendo de seu próprio céu e depois do céu do Criador? Pois, por que hei-de eu evitar censurar estas partes da frase uma vez que não satisfazem a exigência de uma narrativa, mas sempre acabam numa mentira ?
...
Agora, porém, quero também saber o resto da sua viagem para baixo, assumindo que ele desceu. Pois não deve ser muito agradável perguntar se é suposto ele ter sido visto em qualquer lugar. ... (Apareceu repentinamente ou foi visto durante a sua descida?)
É, pois, muito mau Romulus ter tido em Proculus uma testemunha de sua ascensão ao céu , quando o Cristo não poderia encontrar qualquer um para anunciar sua descida do céu;  justo como se a subida de um e da descida do outro, não foram efectuadas em uma e a mesma escada de falsidade ! 

Tertuliano critica as aparições de Jesus na doutrina de Marcion, porque nesta não é explicado como é que se sabe que Jesus desceu dos céus para ser visto, uma vez que ninguém observou Jesus a descer dos céus. Compara, depois, com a história de Rómulus, o primeiro rei de Roma, que, segundo a história contada por Tito Lívio e Plutarco, foi visto a subir e a descer dos céus por um homem chamado Próculo.