domingo, 6 de março de 2016

Zalmoxis, outro que morreu e ressuscitou





Zalmoxis era uma divindade dos Getas (um povo que ocupava parte da Trácia, do baixo Danúbio, no que é hoje a Roménia e a Bulgária).

Heródoto

O historiador grego Heródoto (c. 484 a 425 AEC) refere o deus Zalmoxis da Trácia como tendo sido, na sua origem, um homem que morreu e ressuscitou e, com isso, deu início a uma religião, um culto em que era ensinado que os crentes iriam para o céu ao morrerem:

Heródoto, História 4.93-96 
XCIII — Os Getas, que se dizem imortais, foram o primeiro povo a ser subjugado pelo rei persa [Dario], antes de haver atingido o Íster, seguindo-se os Trácios de Salmidéssia e os que habitam ao norte de Apolónia e da Mesâmbria, que se renderam sem opor a mínima resistência. Os Getas, por uma estúpida teimosia, colocaram-se na defensiva, mas foram batidos ali mesmo e reduzidos à escravidão. É esse povo o mais bravo e o mais justo entre os Trácios. 
XCIV — Os Getas julgam-se imortais e pensam que os que morrem vão para junto do deus Zalmoxis, que alguns acreditam ser o mesmo que Gebeleizis. De cinco em cinco anos sorteiam um dentre eles para levar notícias ao deus, e dizer-lhe das suas necessidades. Eis como fazem a deputação: três dentre eles são encarregados de manter a respectiva azagaia de ponta para cima, enquanto outros, tomando pelos pés e pelas mãos o que deve ser enviado a Zalmoxis, jogam-no para cima, de maneira a cair sobre as aguçadas pontas. Se ele morre dos ferimentos recebidos, acreditam que o deus lhe foi favorável; se não morre, acusam-no de mau. Depois de lançarem sobre ele as maiores acusações e injúrias, escolhem outro, repetindo o mesmo processo. Esses trácios têm o costume de lançar flechas contra o céu quando troveja ou relampeja, como para ameaçar o deus que assim se manifesta, pois estão persuadidos de que não existe outro deus senão o que eles adoram
XCV — Ouvi, entretanto, os Gregos que habitam o Helesponto dizerem que Zalmoxis era um homem, tendo vivido em Samos como escravo de Pitágoras, filho de Mnesarco.
Tendo obtido a liberdade, acumulara grandes riquezas, com as quais voltara ao seu país. Observando a vida infeliz e grosseira dos Trácios, ele, que tinha sido educado segundo os costumes dos Jónios e contraído com os Gregos, e particularmente com Pitágoras, um dos mais célebres filósofos da Grécia, o hábito de pensar mais profundamente do que seus compatriotas, mandou construir um soberbo recinto, onde oferecia festas aos grandes da nação. Em meio ao banquete falava-lhes, persuadindo-os de que nem ele, nem os seus convivas, nem os seus descendentes jamais morreriam, mas que iriam para um lugar onde desfrutariam, eternamente, toda sorte de bens. Enquanto assim procedia perante seus compatriotas, entretendo-os com esses discursos, construía em sigilo um subterrâneo. Concluído este, esquivou-se da vista dos Trácios e desceu ao mesmo, onde permaneceu cerca de três anos. Foi lamentado e chorado como morto. Finalmente, passado esse período reapareceu aos olhos de todos, convencendo-os, com esse artifício, de tudo que lhes havia dito. 
XCVI — Não rejeito nem admito o que se conta de Zalmoxis e do esconderijo subterrâneo, mas penso ter ele vivido muito antes de Pitágoras. Em todo caso, trate-se de um homem ou de um deus, eis o que concerne a Zalmoxis. Quanto aos Getas que o cultuavam da maneira a que me referi, subjugados pelos guerreiros persas, acompanharam a expedição de Dario.

Heródoto afirma que o deus Zalmoxis era originalmente um ser humano, um escravo que converteu os trácios às suas crenças, segundo o ponto de vista dos gregos do Helesponto (estreito de Dardanelos). Depois de ser libertado, Zalmoxis reuniu grande riqueza e, uma vez rico, voltou para sua terra natal. Os trácios tinham vidas duras e simples. Zalmoxis viveu entre os mais sábios dos gregos, como Pitágoras, e foi iniciado nos costumes jónicos e nos mistérios de Elêusis. Ele construiu um salão, e recebeu os chefes e seus compatriotas com um banquete. Ensinou que nem os seus hóspedes nem seus descendentes jamais iria morrer mas, em vez disso, iriam para um lugar onde viveriam para sempre numa felicidade completa. Em seguida, começou a cavar uma residência no subsolo. Quando terminada, ele desapareceu da Trácia, e viveu por três anos na sua residência subterrânea. Os trácios setiram falta dele e choraram receando-o morto. No quarto ano, Zalmoxis voltou para eles e, assim, eles creram no que ele lhes tinha prometido.

Heródoto afirma, também, que Zalmoxis era identificado por alguns dos Getas como Gebeleizis, Gebeleizis era um deus adorado pelos Getas, provavelmente relacionado com o deus trácio da trovoada e relâmpago, Zibelthiurdos (equivalente ao Zeus dos gregos).

Zalmoxis poderá ter vivido muito mais cedo do que Pitágoras. Tanto poderá ter sido considerado um ser divino ou apenas um homem do país dos Getas.

Platão

Platão (c. 428 a 348 AEC), no texto "Cármides", um diálogo entre Sócrates e outros interlocutores que ocupa-se com o tema da moderação, da discrição e do autocontrole, escreveu:

Platão, Cármides 
... 
Tal, Cármides, disse eu [Sócrates], é a natureza do encanto (magia, milagre), o que eu aprendi, quando servi no exército, de um dos médicos do rei trácio Zalmoxis, que se diz serem tão competentes que podem até mesmo dar a imortalidade. Este trácio disse-me que na perspectiva deles, que eu ainda agora citei, os médicos gregos estão muito bem, tanto quanto eles; "mas Zalmoxis", acrescentou, "o nosso rei, que também é um deus, disse que não se deveria tentar curar os olhos sem a cabeça ou a cabeça sem o corpo, então, nem se deve tentar curar o corpo sem a alma; e isso", disse ele, "é a razão pela qual a cura de muitas doenças é desconhecida para os médicos da Hélade, porque ignoram o todo, que deve ser estudado também; pois a parte nunca pode ficar boa a menos que o todo fique bom".
...
Se à beleza adicionares a temperança, e se em outros aspectos, tu és o que Crítias declara que és, então, caro Cármides, bendito és, em ser o filho da tua mãe. E aqui reside o ponto; pois se, como ele declara, tens já este dom da temperança, suficiente, então não tens necessidade de qualquer encanto (magia, milagre), seja de Zamolxis ou de Ábaris, e eu posso também deixar teres a cura da cabeça de uma só vez; mas se ainda não adquiriste essa qualidade, eu devo usar o encanto antes de dar-te o medicamento. Por favor, portanto, informa-me se admites a verdade das afirmações de Crítias; - tens ou não tens esta qualidade da temperança?
...

Jordanes

A interpretação de Jordanes (historiador romano oriental do século VI EC) é que Zalmoxis era considerado um ancestral dos Getas, tal como o deus Marte, e que os Getas veneravam alguns antepassados como sendo deuses.

Jordanes, Getica   (39-41) 
39 Voltando, então, ao meu assunto. A mencionada raça de que falo é conhecida por ter tido Filimer como rei enquanto permaneceram no seu primeiro lar na Cítia perto de [lago] Maeotis. No seu segundo lar, isto é, nos territórios da Dácia [hoje Roménia], Trácia e Moésia, Zahiioxes reinou, sobre o qual muitos cronistas o referem como um homem de notório conhecimento filosófico. Ainda antes tiveram um homem culto, Zeuta, e depois Dicineus; e o terceiro foi Zalmoxis de que já falei. Pois não lhes faltaram mestres de sabedoria.  
40 Portanto, os godos foram mais sábios do que os outros bárbaros e foram quase como os gregos, como Dio [Cássio] refere, que escreveu sua história e anais com uma caneta grega. Ele diz que aqueles de origem nobre entre eles, de quem os seus reis e sacerdotes eram nomeados, foram chamados primeiro Tarabostesei e depois Pilleati. Além disso tão elogiados foram o Getas que Marte, a quem as fábulas de poetas chamam de deus da guerra, tinha reputação de ter nascido entre eles. Daí Virgílio diz: 
41 "Pai Gradivus [outro nome de Marte] governa os campos dos Getas"
Pois Marte sempre foi adorado pelos godos com ritos cruéis onde prisioneiros eram mortos como suas vítimas. Eles pensavam que aquele que é o senhor da guerra deveria ser aplacado com o derramamento de sangue humano. Para ele dedicavam a primeira porção do despojo e em sua honra arrancavam os braços dos inimigos e suspendiam-nos nas árvores. E eles tinham, mais do que todas as outras raças, um profundo espírito religioso, uma vez que o culto a esse deus parecia estar realmente como o concedido a seus ancestrais.

Outras interpretações sugerem que Zalmoxis poderá, em algum período, ter-se tornado a principal divindade dos Getas, tal como Heródoto teria descrito "estão persuadidos de que não existe outro deus senão o que eles adoram".


Referências