domingo, 11 de fevereiro de 2018

Actos - Paulo em Atenas é Sócrates




Paulo em Atenas

(Adaptação de um artigo de  Kenneth Humphreys - Paul in Athens)

Em Actos 17:15-34 lemos que, numa viagem missionária, o apóstolo Paulo visitou Atenas e permaneceu sozinho na cidade. Até aqui tudo bem, porque isto até é confirmado pelo próprio Paulo em Tessalonicenses 3:1.

Actos 17:15-34 (resumo) 
Paulo chega a Atenas com os seus companheiros. Estes partem e deixam-no lá sozinho.
Paulo ia todos os dias à sinagoga debater com judeus e à Àgora (praça central da cidade) debater com gregos.
Alguns filósofos epicuristas e estóicos, suspeitando que Paulo era um pregador de deuses estrangeiros, levam-no ao Areópago (onde funcionava o tribunal).
No Areópago, Paulo começa por insultar os gregos acusando-os de serem "demasiado supersticiosos". Diz saber que os gregos, para além dos templos dos deuses conhecidos, tinham também um santuário dedicado ao "deus desconhecido" e que ele vinha anunciar esse deus que eles já honravam.
Paulo cita poetas gregos para apoiar o seu argumento.
Alguns gregos ficam interessados e crêem na mensagem de Paulo.
Paulo deixou a cidade e nunca mais voltou.


Mas como é que o autor de Actos dos Apóstolos soube o que se passou com Paulo em Atenas, uma vez que Paulo permaneceu lá desacompanhado? E como é que soube o que é que os filósofos atenienses disseram uns aos outros antes de levaram Paulo ao Areópago?

Será que todo este episódio de Actos sobre "Paulo em Atenas" é uma construção do autor? Uma história simbólica do triunfo cristão sobre o paganismo?


Atenas clássica

O autor de Actos retrata Atenas com os traços da época clássica grega. Tudo o que refere de Atenas é a Ágora ("praça") e o Areópago ("colina de Ares", ou colina de Marte, onde funcionava o tribunal) - lugares comuns que qualquer estudante da língua e cultura grega teria aprendido na escola.

Mas no tempo de Paulo (por volta de 50 EC) a área da Ágora já não era um espaço aberto. Atenas, neste tempo, fazia parte de uma colónia romana, que passou por pesadas reconstruções ao longo de muitas décadas. A Ágora encontrava-se repleta de edifícios, seguindo a moda romana de construção intensa e especulação imobiliária, desde o tempo do imperador Augusto.

Na sequência de uma guerra e de um longo cerco, a cidade de Atenas foi destruída e saqueada por Sula em 86 AEC.

A restauração de Atenas começou sob Augusto, a partir de 27 AEC, com a limpeza da área a norte da Acrópole e a construção de um novo fórum ao estilo romano, o "Mercado de César e Augusto". Este era o novo centro comercial da cidade.

No nordeste da antiga Ágora, foi construída uma basílica colunada para uso da administração romana. Marcus Agrippa, genro do imperador Augusto, construiu uma enorme sala de espectáculos, o edifício Odeon, com capacidade para mais de mil pessoas, bem no centro da área que tinha sido a velha Ágora. E este edifício estava rodeado por outros templos.

Surpreendentemente o autor de Actos menciona também uma sinagoga, mas não é conhecida nenhuma comunidade judaica, naquele tempo, em Atenas, suficientemente grande para ter uma sinagoga.


Paulo vs Filósofos Gregos

O drama central desenrola-se com um encontro entre Paulo e filósofos gregos, especificamente epicuristas e estóicos.

O altar ao deus desconhecido

Paulo aparentemente encontrou um altar dedicado ao "deus desconhecido" - uma descoberta notável, considerando que mais ninguém o fez até ao presente. De dezenas de milhares de inscrições gregas, nenhuma inscrição dedicada a um "deus desconhecido" jamais foi encontrada.

Paulo revela aos filósofos "ignorantes" que essa divindade desconhecida, que os gregos já veneravam sem o saber, era o Deus dos judeus, Yahveh. Tendo em conta que os atenienses só dedicavam santuários aos deuses relevantes para a sua cultura, o deus dos judeus nunca se teria qualificado a um templo em Atenas.

Filósofos supersticiosos

Paulo começou o seu discurso referindo-se aos filósofos gregos como "demasiado supersticiosos" ou "demasiado religiosos".

Que ironia acusar os epicuristas de supersticiosos quando eles eram não só racionalistas sóbrios como, na prática, ateus! Para eles, os deuses, se é que existiam, não criaram o mundo nem se importavam com os humanos.

Quanto aos estóicos, estes também não tinham grande apego pelo irracional. Para eles, Deus era uma força racional ou "logos" que permeava todas as coisas.

Filósofos polícias

Bizarramente, em Actos, os filósofos agem como polícias, detendo Paulo e levando-o ao Areópago (colina dedicada ao deus grego Ares, ou Marte para os romanos).

O pretexto que os filósofos apresentaram para levar Paulo ao Areópago foi porque o queriam ouvir. O autor de Actos acrescenta que "todos os atenienses e estrangeiros residentes de nenhuma outra coisa se ocupavam senão de dizer e ouvir alguma novidade." (Actos 17:21). Uma acusação de que os atenienses, em geral, eram ociosos.

Mas era nessa colina rochosa que habitualmente eram realizados os julgamentos de homicídios!


Paulo é Sócrates

O autor de Actos quis recriar o ambiente do famoso julgamento de Sócrates, que teria ocorrido uns 400 anos antes. Há demasiadas coincidências para duvidar que essa seria a sua intenção.

Sócrates

Sócrates (cerca de 469 a 399 AEC) foi um filósofo da antiguidade clássica grega, creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental. Uma figura enigmática, conhecida principalmente através das obras de dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de Aristófanes.

Sócrates não acreditava na democracia. Achava que escolher governantes (votar) era uma actividade muito complexa e não um mero exercício de intuição. Os governantes deveriam ser filósofos escolhidos por filósofos (governo de elites esclarecidas).

Sócrates, já idoso, foi acusado de corromper a juventude, de renunciar os deuses de Atenas e de introduzir novos deuses. Foi julgado, condenado e executado.

Sócrates é figura central em livros de Platão - por exemplo, no livro O Banquete (Symposium) ou no conjunto de dez livros A República (Politeia).

Platão escreveu também uma série de livros com supostos diálogos que Sócrates teve por volta da data do seu julgamento.
 - Eutífron, com Sócrates a caminho do tribunal para conhecer as acusações que lhe foram movidas pelo jovem Meleto;
 - Apologia, com a descrição do julgamento;
 - Críton, com a visita de seu amigo mais querido ao cárcere;
 - Fédon, com os últimos instantes de vida e o discurso sobre a imortalidade da alma.


Paulo em Actos dos Apóstolos

Em Actos dos Apóstolos, a "acusação" preparada para Paulo foi a seguinte:
Actos 17:18 
Uns diziam: "Que quer dizer este paroleiro?" E outros: "Parece que é pregador de deuses estranhos."

Esta acusação era idêntica à de Sócrates: a introdução de deuses estranhos em Atenas -
Apologia de Sócrates, por Platão 
- Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.

Paulo é apresentado como um grande filósofo, equiparado a Sócrates:
 - Paulo, como Sócrates, expôs seus pontos de vista na Ágora antes de ser julgado.
 - Paulo, como Sócrates, começa o seu discurso com "Homens de Atenas!".
 - Paulo, como Sócrates, não era democrata ou igualitário. Paulo acreditava que as pessoas comuns eram como ovelhas, precisando de uma direcção firme por um pastor sábio. Sócrates acreditava que as pessoas comuns não tinham habilidade suficiente para escolher os seus governantes.
 - Segundo Actos, Paulo ouviu a voz do "Senhor" que o guiou para a sua missão. Sócrates dizia-se inspirado por uma voz a que se referia como o seu daemon ("divindade", "espírito").
 - Paulo, no seu curtíssimo discurso, referiu-se a poetas. Sócrates refere mesmo que uma das principais disputas na sua acusação dizia respeito a poetas. 

Em Actos dos Apóstolos, Atenas não é uma cidade, mas uma metáfora para toda a tradição filosófica grega - ou seja, pensamento racional.

Paulo faz um discurso no Areópago mas abandonou o local sem debater com os filósofos. O cristianismo não estava interessado num debate com o racionalismo grego - estava fanaticamente determinado a destruí-lo!

Para o autor de Actos, a filosofia era um engano perigoso, o racionalismo é uma obsessão de elites ociosas! (Actos 17:21)


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